Deliberadamente calmo, e hoje, como ontem, anteontem e por assim girar os ponteiros do vital relógio contra seu curso habitual, eu fito os olhos sobre meus olhos no espelho de prata polida da sala de estar. Não me convém bradar contra o mundo que se forma por de trás da prata, não me convém exaltar os ânimos sem que as queixas tenham claro sucesso.
Confesso que sempre admirei a beleza daquele espelho, ornado com enlaces complexos cravados na prata, que brilham onde merece a luz e enegrecem seus veios mais obscuros. Seu espírito gótico embala uma leve dormência contemplativa, um filosofar visual, um exaltar silencioso. Era um belo e antigo espelho de prata polida.
Mas não, hoje em dia o meu interesse não era mais contemplar aquela peça de antiquário, longe disso. Atualmente o que me prendia àquele pedaço de metal brilhante era tão somente a capacidade de ver também o pranto das safiras, jóias de um fantasma alvo.
Objeto algum ao passar por baixo destes minuciosos olhos havia revelado o mundo gelado que a prata aclarava diante de meus olhos. Olho algum havia deitado a vista sobre esse mundo, e nem haveria de deitar.
Eram safiras de gelo as que brilhavam em meio a neve, gelo luzindo sobre gelo. E derretiam, gradativamente derretiam, talvez chorassem de fato. E esse mundo não me alegrava, o oposto, na verdade. Ainda não fora inventada palavra para arremessar em protesto contra um delírio involuntário. Uma pena.
Pois ainda a me incomodar com a glacial ilusão, me perdi em pensamentos vagos, me perdi em acontecimentos vagos, me perdi em uma vida vaga.
Então vendi. Não desejava mais fitar olhos com o frio que derivava daquela peça brilhante, desejava me libertar daquele mundo gelado.
E ao entregar o espelho ao simpático senhor que o comprara, enquanto esse contava as notas de sua velha e desgastada carteira, me ative a um detalhe novo. Justamente por ser um detalhe, sobre um espelho que eu trilhava com os olhos todos os dias, que mais me instigou a verificar. Uma particularidade estranha gravada de forma singela, atrás do corpo do espelho, próximo às costas da moldura, uma inscrição até agora desconhecida por mim:
“Desta prata, o reflexo d’alma”. E assim, entreguei o reflexo da minha alma àquele senhor.
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